In Memoriam de JOSÉ SARAMAGO (1922-2010), Prémio Nobel da Literatura (seja para inveja de muitos escritores de pacotilha, meramente verborraicos, que a ele aspira(ra)m, como para desdita de muitos inimigos de quem não "reza(rá)" a história, Ars Integrata republica aqui, com a devida vénia ao blogue Ars Litteraria a cujo arquivo o fomos recuperar, um texto de Rui Zink a propósito de "Caim" (o último livro do ora falecido escritor), e do que dele se disse...
Um santo homem
Querido Metro,
acho que há uma prova da existência de Deus: é que uma entidade da qual passamos a vida a falar tem forçosamente, nem que seja na nossa cabeça, de existir. Aliás, quando está escrito “No princípio é o verbo” isso dá para os dois lados, como de resto tudo no texto bíblico: dá para falar da criação do mundo (foi a Palavra Divina), e também para dizer que é através da palavra (humana) que a humanidade descobre Deus. Por isso me zango quando as pessoas dizem “é só conversa”, “o silêncio é d’oiro”, “eles falam, falam, falam”. É que não é só a falar que a gente se entende, é a falar que a gente é gente. No princípio é o verbo? Pois no meio e no fim também. A palavra é divina, mesmo quando não é palavra divina. Dito isto, confesso que gosto muito do Saramago e gosto muito da Bíblia. Ambos têm idade para merecer o nosso respeito e ambos dizem coisas controversas, umas vezes mais acertadas, outras mais perturbantes – mas sempre folgazões e intrigantes. Um grande livro, um grande homem, e sobretudo ajudam-nos a viajar. No viajar é que está o ganho. Saramago não é teólogo? Graças a Deus, pois a religião é uma coisa demasiado séria para ficar só entregue a especialistas. O bom José tem a autoridade de quem conviveu com o mundo e a linguagem ao longo de toda uma vida. Não será um erudito do texto sagrado, mas pensa pela própria cabeça, sabe ler, leu muito, tem voz própria, e é isso que se espera dum escritor. E querem maior prova da existência de Deus que um ateu, aos 87 anos, esmiuçar o episódio de Caim, o proscrito, resgatando-o como irmão humano? Ou gesto mais generoso do que estender a mão ao primeiro dos “malfeitores”, ao contrário dos que (tenho uma lista) passaram estes dias a praticar a triste arte da preterição, dizendo que nem vale a pena falar do assunto de que estão a falar?
Com franqueza, se isto não é um santo homem, indiquem-me o vosso santo caixote do lixo.
Rui Zink
In: Metro, ano 6, n.º 1088, de 2009-10-28
In: Metro, ano 6, n.º 1088, de 2009-10-28
links:
http://www.josesaramago.org/
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago
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