Ha-I-ti, to-day (2010) /David Zink
A cadeia humana
Querido Metro, agora é o Haiti. Recebi via Timor um convite para me associar a um grupo de solidariedade – via Timor! Lembrei-me logo daqueles dias no final dos anos 90 em que Portugal inteiro parecia tomado por um êxtase colectivo. Que depois amainou, e até resultou em algum desânimo ao ver que Timor não se tornou logo o país fantástico, próspero e feliz com que toda a gente sonhava.
Não acho que agora o Haiti seja o fim do mundo. Para começar porque já era: aquele país de ex-escravos e pária na comunidade internacional nunca teve nenhuma hipótese. E depois, todos os dias são o fim do mundo – para alguém. Por sorte, todos os dias são, também para alguém, “o dia mais feliz da minha vida”. As televisões habituaram-nos a conciliar o horror das imagens com o sabor do bacalhau com natas. E isso pode promover indiferença. Mas nem sempre. Porque a alternativa, essa sim, seria insuportável: de cada vez que houvesse uma tragédia no mundo desatarmos a choramingar de comoção. Isso dava-nos cabo da saúde e não ajudaria ninguém. O mundo tornar-se-ia um lugar insuportável, pois a cada momento há desastres, crimes, etc.
Ná, eu prefiro as águas bem separadas. Quero países prósperos a ajudar (ou a não fazerem nada, que também é um direito, mas depois não se queixem quando chegar a vez deles). E pessoas capazes de compaixão mas que, se a vida lhes corre bem, não se sintam culpadas por isso. É que não é só “tristezas não pagam dívidas”, as malandras das tristezas também não prestam bom auxílio. Se vamos por provérbios, prefiro aquele que diz que “não há mal que não venha por bem”. Para muitos haitianos o mal veio, e não foi por bem, como diariamente acontece a muita gente pelo mundo fora, Portugal inclusive. Mas para outros haitianos, os que sobreviveram, talvez agora haja aquilo que não tinham antes do terramoto: alguma esperança.
Rui Zink
in Metro, n.º 1137 (2010.Jan.20)
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